Quando o trabalho perde a graça, porque a graça virou trabalho.
Olá, quebras-de-página do livro da vida! ¿O que acharam do blog novo? Espero que tenham gostado, porque ele foi feito a-mão pelas freirinhas cegas & coxas dum convento carmelita incrustado nas montanhas gélidas da Bielo-Rússia. Tadinha delas! No capítulo anterior, eu fiz uma interrupção nos assuntos que vínhamos tratando aqui. Achei por bem falar dos mitos que pairam em torno daquilo que eu chamei de "melôs da gestão". Eu me referia às modinhas que todos os anos prometem a salvação da espécie humana, a paz no Oriente Médio e o fim da ejaculação precoce — tudo-isso embrulhado em consultorias mirabolantes e muito jargão técnico. Falei que esses modelos de gestão, quando surtem algum efeito, fazem-no por razões "humanas" que seus próprios criadores ignoram, pois estão fora da mira quantitativa dos consultores que os implementam. Feita essa ressalva, espero que ao-menos os leitores deste blog cultivem um saudável "ateísmo" em relação aos profetas, messias e gurus do mundo corporativo. Disto isto, continuemos.
O objetivo desses capítulos seqüènciais é mostrar para vocês — ó futuros agraciados pelo Bolsa Falência — as diversas formas de se começar um negócio. Depois de vários capítulos tratando dos conceitos de propósito, metas e sonhos, chegamos à conclusão de que o melhor modelo-de-negócio está na intersecção entre aquilo que você gosta de fazer e é bom fazendo, dum lado, e aquilo que o mundo precisa e está disposto a pagar, do outro. Depois, usamos dois ou três capítulos para fazermos uma incursão no perfil dos empreendedores e microempresários. Abordamos ràpidamente a questão do aprendizado empreendedor. Por fim, nos capítulos recentes, falamos da estratégia da startup enxuta — que é apenas um dos caminhos à disposição do empresário iniciante. A criação de ciclos de aprendizado, produção de protótipos, aplicação e captação de feedbacks é o meio-termo viável entre o planejamento obsessivo e o salto porra-louca no escuro. Pois bem. Começarei a tratar neste capítulo da terceira via para a abertura dum negócio: o hobby.
Imagine a seguinte situação (ou piada interna). Você tem um lado gay muito assanhado & talentoso. (Parênteses: uma das crenças mais fanáticas & jihadistas deste blog é que o talento tem as mais inusitadas e milagrosas origens, ignorando solenemente distinções étnicas, raciais, etárias, sexuais, sociais, econômicas e ideológicas. E eu digo isso não porque quero parecer bom-moço em público, mas porque comprovo isso todos os dias no meu trabalho como docente. Continuemos). Durante o dia, você é um engenheiro almofadinha & engomadinho, mas durante a noite... ah, bandida! você se diverte horrores projetando modelitos fàbulosos para arrasar no verão. A moda é seu hobby! Detalhe: você é bom nisso; você é feliz nisso. A moda é sua diástole; o escritório de engenharia é a sístole da sua rotina. ¿Entendeu? E quando se entrega às tesouras e agulhas, você não sente o tempo passar. Eu me permito fazer essa piadinha porque meu lado gay são o paisagismo e a jardinagem — o que, aliás, torna-me um prèdestinado pelo sobrenome.
Um dia, você toma coragem e mostra o resultado das suas produções a alguém da família. Você queria apenas uma crítica, sugestão ou conselho; alguém que confirmasse ou o dissuadisse dessa curiosa vocação. Mas eis que, em vez do esperado conselho, você recebe sua primeira encomenda. Opa lelê! Um horizonte novo se descortina. "Então, ¿quer dizer que eu posso fazer uma coisa que me diverte e, ainda por cima, lucrar com isso?" Doravante, uma doce vaidadezinha contaminá-lo-á. No fundo / no fundo, você não está feliz pela perspectiva de renda extra, mas pelo fato duma pessoa ter-se mostrado disposta a trocar o produto do trabalho dela pelo produto da sua diversão. ¿E você sabe como se chama isso? Reconhecimento! E isso é muito bom! Mas veja só que armadilha diabólica esconde-se detrás da frase acima: sua diversão passará a ser reconhecida e, portanto, remunerada, com a condição de deixar de ser um hobby e tornar-se um trabalho — mais-ou-menos como aquela chatice que você faz no escritório de engenharia.
¿Você captou aonde eu quero chegar? Então, preste muita atenção nisso: há duas armadilhas — comuns & opostas, mas igualmente mortíferas — nas quais vários empreendedores e microempresários caem logo no início: 1) empreender por necessidade, de maneira afobada, fazendo algo que detesta e num segmento que desconhece, mas que lhe disseram que dá dinheiro; e 2) transformar seu hobby num negócio e, assim, contaminá-lo com as chatices nada lúdicas do ambiente de trabalho: horários, clientes, tributos, metas, preços, fornecedores, cobradores, funcionários, etc. Em ambos os casos, embora por motivos opostos, o resultado é uma tremenda frustração que, a longo prazo, custará a saúde física & mental do empreendedor e/ou a contìnuidade sustentável da própria empresa. Em ambos os casos, falta aquela intersecção miraculosa e equilibrada que dissemos definir os negócios de sucesso: a junção entre o que eu gosto de fazer e o que o mercado demanda. E especìficamente no caso de se transformar um hobby num negócio, você precisa responder com sinceridade algumas perguntas.
¿Você está disposto a misturar trabalho com diversão? Noutras palavras, ¿você topa contaminar ou sacrificar aquilo que você sabe que lhe diverte por aquilo que você acha que pagará suas contas? ¿Você tem noção e toleraria cumprir toda a parte contábil e jurídica, burocrática e estratégica que seu hobby-negócio obrigá-lo-ia a cumprir? ¿Você agüentaria desempenhar esse hobby-negócio seis vezes por semana e de catorze a dezoito horas por dia? ¿Você gosta de todos os detalhes e processos ligados ao seu hobby? ¿Seu entusiasmo é suficiente para converter e ensinar às pessoas o seu hobby? ¿Há outras pessoas e empresas oferecendo esse mesmo serviço ou produto no mercado? ¿Como foi a trajetória de sucesso ou de fracasso delas? ¿Como seu produto ou serviço pode ser diferente dos já oferecidos por essas pessoas e empresas? ¿Você já tem uma base prévia de clientes em potencial? Quer dizer, ¿você conhece pessoas suficientes que pagariam por seus produtos ou serviços de maneira fiel, sustentável e constante por um longo tempo?
Pois suponhamos que você — o engenheiro-costureiro e vice-versa — respondeu sim, com um leve desmunhecar do antebraço, à maioria das questões acima. Como você não é bobo nem nada, seguindo os conselhos deste blog, você continuará por algum tempo trabalhando lá no escritório chatíssimo e mantendo uma vida-dupla, semelhante às prostitutas. Durante o dia, entre as plotadoras; durante a noite, entre as costureiras. Já que a moda é seu passatempo, você não vai achar ruim gastar suas horas de lazer aprendendo, estudando, pràticando e investindo naquilo que será sua futura e própria empresa. Parte do salário que você recebe do escritório será poupado para formar a reserva-de-capital do negócio. Isso o tornará menos dependente de empréstimos a bancos ou a sócios no futuro. Agindo de forma ética, nada impede que você transforme seu atual emprego num casulo dentro do qual sua futura empresa-mariposa hiberna segura, fazendo contatos e parcerias estratégicas que serão importantes futuramente, quando ela alçar vôo.
Você pode rezar para São Clodovil e São Denner para encontrar o equilíbrio perfeito entre a diversão — que você não precisa perder — e as tarefas do dia-a-dia. Mas especialmente os empreendedores, que são mais livres para agir que os empregados tradicionais, não acham tão difícil encontrar esse equilíbrio, porque você sempre poderá encarar como um hobby as atividades estratégicas e criativas do negócio, tendo em vista que essas áreas aí têm um fortíssimo componente artístico, lúdico e onírico. Nelas, o devaneio não apenas é permitido como também é necessário. E se ainda houver partes chatas dos processos que o desgostarem, é sempre possível terceirizá-las, transferi-las para outras firmas (quando sua empresa tiver condições financeiras para isso); ou então delegá-las para um colega, parente ou, se for o caso, para um sócio. No mais, lembre-se de tudo o que o incòmodava no emprego anterior; e tente criar, na nova firma, um ambiente fìsicamente, mentalmente e moralmente agradável. E então, aí sim, divirta-se!
¿QUEM É JOHN GALT?